domingo, 28 de agosto de 2016

Canção da estrada aos 37

Na semana que passou atravessei o Estado do RS de ônibus, rumo às Missões. Ônibus e rodoviárias são lugares onde eu costumo escrever, desde sempre. Sabe como é, aqueles momentos em que você não tem o que fazer. Vai olhando a paisagem, as pessoas em volta, o pensamento voa... Lembrei então de um poema escrito quando eu fiz 37 anos, que surgiu numa viagem parecida. Era uma noite de lua cheia, e para variar eu pensava na passagem do tempo. Dedicado a um velho amigo, que faz aniversário quase junto comigo, e à sua companheira, o poema foi incluído no meu último livro, Luta+vã (Libretos, 2012), e, apesar do título, (ainda) não foi musicado (que eu saiba).
Mais uma vez, como na maior parte da minha produção mais recente, a dica é ler em voz alta para sentir o ritmo.

CANÇÃO DOS 37 

para Otávio e Genecy

O ônibus avança pela estrada branca
Lua sobre o Vale do Rio Taquari
Espessa neblina ocultando a várzea
Paisagem da infância não está mais aqui

Um tempo se vai, de mim arrancado
Como flecha ou filho. Outro vem aí
Pra me atropelar, se estiver dormindo
Deve ser por isto que não prego o olho
Perfurando a névoa, perscrutando a noite
Vou contando as léguas que faltam pro fim

Noite-pampa, noite-mar, noite-guaçú! 
Vamos à deriva sobre a terra-mãe
Tu regularmente acendendo as luzes
Eu na mão do acaso, me agarrando às horas
Eu na minha poltrona, tu maior que o tempo
Eu e minha insônia, tu e teu luar.

domingo, 21 de agosto de 2016

Só mais uma canção

Erika, a dona da voz, na gravação.
No embalo do poema da semana passada, que tinha violão, e já que o meu final de semana começou com música - cantei num pub na sexta à noite - e já que a música popular brasileira é a primeira influência detectável na minha poesia - aquilo que eu escutava nos anos 1970, quando meus conhecimentos de poesia escrita não iam além do conteúdo dos livros escolares - o poema da semana vai ser mais uma das letras que fiz. A canção está gravada no disco Trem da Utopia, e foi tema do videoclipe do meu amigo Júlio Munhoz.

Posto aqui a versão original, que é da década de 1980 e tem pequenas diferenças em relação à gravação, sendo a mais notável o corte dos dois últimos versos, que na hora de gravar me pareceram explícitos demais. (para compensar, cantamos a última estrofe 2 vezes e terminamos repetindo outra vez o primeiro verso dela). Que vocês acharam?



Procurar


Pelas ruas, onde as vozes
costumam se encontrar;
onde a lua, nas janelas
do décimo-quinto andar,
improvisa o nosso palco,
se a gente quiser cantar...

Fazer de cada um estrela a mais!
O sonho foi tudo o que nos restou.
Brilhar, pra não sumir de vez...

Olha as luzes da cidade,
mas não te deixa ofuscar.
Já termina um outro inverno,
tanta estrada sai daqui...

E essas montanhas não se vê jamais!
Nenhum de nós enxerga além de si.
Não passou por aqui a paz?

Deixa aí no chão o que restou de ti.
Vai, vai procurar as tuas lágrimas.
Ninguém sabe mesmo para onde ir.
Lemos o futuro em tuas entranhas.
Tanto medo só nos dá mais esperanças.
Tanta dor não cabe mais aqui...

sábado, 13 de agosto de 2016

Dia dos Pais, inclusive os que tocam violão

Pelo final dos 1980, quando eu ainda não era pai, mas volta e
meia alguém adormecia com aquelas musiquinhas que eu tocava.
(Foto Vera Zagonel)
Segue a série "Ser pai, ser filho", que integra o livro Luta+vã, com esse poema curto. A cena retratada é verídica, e com certeza familiar a muitos senão todos os meus amigos músicos: quem não tocou ou cantou para as crianças dormirem?
Reparem que o retrato doméstico, que inicia naquele clima de pai herói e protetor, termina na reflexão existencial, provocada pelo múltiplo sentido dos dois versos finais, onde "meu turno" é não só essa hora indefinida de uma noite qualquer, mas também o tempo tão bom de criar os filhos, que um dia se acaba; ou a duração total da minha vida. Eis o motivo pelo qual gosto tanto deste poema singelo.

Sentado à porta
do quarto delas
eu conto histórias.

Armado apenas
de um violão,
eu monto guarda
contra os fantasmas,
que às vezes vêm
de não-sei-onde.

Passada a noite,
terão sumido.
Meu turno findo,
irei também. 

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Pais, filhos, etc.

Já em clima de Dia dos Pais, o poema desta semana faz parte de um conjunto intitulado "Ser pai, ser filho", incluído em meu último livro, Luta+vã (Libretos, 2012). Na próxima postagem, darei sequência ao tema.

I.
A mão de meu pai sobre meu ombro
magro, a um tempo conforto e aviso:
– Segue por essa rota, filho,
ou com certeza irás cair!

Cair, no caso: mera obrigação
de menino que se preza.
Quando caio, cumpre-se a Justiça
de Deus; cai de meus ombros o peso
do pecado, e da boca do pai
a frase, feito pedra, cai:
– Bem que eu avisei!

E passo assim em quedas a vida,
sucessivas, cada vez mais altas,
mas todas muito bem previstas.
(E até, alguma vez,... desejadas?)