segunda-feira, 4 de julho de 2016

Um requiem para Ulysses

O poema desta semana sai com algum atraso. Não é que falte material, mas a intenção de publicar com regularidade esbarra na falta de disciplina do autor, que ademais não tem o hábito jornalístico. Assim, depois de comemorar algumas efemérides (aniversário do lançamento de livros, dia das mães, etc.), comecei a me sentir atado por elas. Deu branco. Ia sortear um poema ao acaso, até que ontem, assistindo TV, me deparei com um documentário sobre Ulysses Guimarães, que faria 100 anos no próximo dia 6 de outubro (tá meio longe ainda, mas vá lá), cujo fantasma certamente assombra os pesadelos de certas lideranças fisiológicas de seu partido hoje em dia. Pois fui folhear meu livro O Primeiro Anel (1996) e não é que tinha lá um poema dedicado a ele?
Não é exatamente uma homenagem ao "Senhor Diretas", de quem não cheguei a ser um fã, embora seja impossível não ter saudades dele diante da deterioração de nossa classe política. É antes uma reflexão provocada pela enxurrada de elogios ouvidos (somente) após sua morte e também, é claro, pelo seu peculiar e poético desaparecimento, no mar e sem deixar vestígios.
Aproveito para homenagear também meu caro amigo Irno Lenz, que há exatamente um ano partia, deixando também para todos que o conheceram seu exemplo de luta e integridade.

REQUIEM IV

para Ulysses Guimarães
Morresse hoje, e seria
santo e sábio e bom
e forte como só aqueles
— os que se foram — é que sabem
ser, agora que não são mais.

Morresse hoje eu, e sobre
a tumba em abundância correriam
lágrimas de quem me desprezava.
(e para que correriam hoje,
lágrimasque em vão tentei
arrancar com versos, cartas,
promessas, súplicas e ameaças
de strip-tease?)

Morresse hoje eu, de repente,
e afinal saberiam todos
que me amavam, e eram todos
por mim amados: de um só golpe
saberiam todos, com certeza.

Nuvens que pairavam entre nós
se desfariam, e tudo estaria claro.
Agora saberiam, e agora
seria como sempre havia sido,
exceto por uma coisa:
seria tarde.

Morresse hoje eu, e encontrasses
tu, meu amigo, em minha estante,
estes versos cheios de presságio
e julgarias enfim que me compreendes,
agora sim; que sou sublime,
agora que, de fato,
já nada sou.

(Mas teria valido a pena,
ao menos, o tempo gasto
em escrevê-los...)

Morresse hoje, e os demais
habitantes do planeta,
esses bilhões de seres estranhos
(para não falar das pedras
do calçamento e do restante
do universo) nada sentiriam.


Isto é o que no fim das contas me consolará.

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